Cidades. Brasília, domingo, 10 de julho de 2011. Correio Brasiliense
por Conceição FreitasEmbaixatriz das águas
De calcinha, sutiã e brincos, a mulher entrou no espelho d`água do Itamaraty e inaugurou, a seu modo, a democracia popular no mias fechado dos clubes brasilienses, o da diplomacia. A candanga morena e redonda fez valer o seu direito a uma lasquinha dos muitos privilégios usufruídos pela chancelaria. Desorganizou a atmosfera solene de um palácio que reúne, num só volume, um conjunto de preciosidades da arquitetura, do paisagismo e da arte brasileiros. Foi riscado por Oscar Niemeyer, desenvolvido por Milton Ramos e tem obras de grandes artistas brasileiros de todos os tempos.
Pouco importava à brasiliense que nadou nas proximidades do paisagismo de Burle Marx a gravidade do cerimonial palaciano. Para ela, o que havia ali era tão-somente um tanque raso convidando-a a um banho refrescante numa tarde ensolarada de um julho que anuncia a chegada de uma seca implacável. A candanga cumpriu todos os passos da higiene corporal e, no fim, mergulhou e nadou no espelho d`águas que contorna o Palácio do Itamaraty, obra de Niemeyer que consegue ser ao mesmo tempo brutalista e lírica – como aquela mulher.
A candanga das águas palacianas tem algo de bárbara – esquece os bons modos, dana-se para a imponência dos Três Poderes, despreza a solenidade imperativa da chancelaria. E de lírica – deita-se nas mãos, levanta nuvens borbulhantes, numa poesia urbana e marginal. Ela não tem pressa, nem mesmo parece saber que está praticando uma desobediência civil. A candanga das águas fura o bloqueio das proibições tácitas e reinaugura o Palácio do Itamaraty, tira a casaca da diplomacia e faz um carnaval solitário na Esplanada dos Mistérios.
A embaixatriz das águas do cerrado repetiu um gesto antigo, de um modo mais heroico, porque desobediente. Quando o Palácio da Alvorada ficou pronto, em 1958, Juscelino mandou abrir a bela piscina presidencial para os operários da construtora Rabello que haviam participado da obra. O mergulho coletivo foi acompanhado de um churrasco. O episódio ficou guardado na memória afetiva dos candangos, muito mais que qualquer outra festa que se tenha feito nos tempos da construção. Por um instante que tenha sido, eles se sentiram donos do que haviam construído. E puderam contar que um dia mergulharam na piscina do presidente.
A mulher que tomou banho no espelho d`água do Itamaraty talvez não tenha se dado conta de seu feito. Se for uma moradora de rua, ela deve conviver com a cidade como se toda ela fosse o quintal de sua casa – toda a Brasília é o quintal de uma casa que ela não tem. A embaixatriz das águas praticou um gesto diplomático. Aproximou dois mundos segregados: o dos palácios e o das ruas. Fez um bem danado à capital que tanto precisa misturar suas diferencias de classe.
Digitação e formatação: Ir. Vicente Fialho