Cidades. Brasília, segunda-feira, 11 de julho de 2011. Correio Brasiliense
Por Severino Francisco
Camões de bacia
Nelson Rodrigues esteve na festa de inauguração de Brasília e escreveu uma belíssima e contundente crônica, marcada pelo espanto com a beleza e com a dimensão épica da capital modernista. O êxtase era ainda mais intenso e surpreendente porque a cidade futurista surgia em meio a um canteiro de obras, misturada com as nuvens de terra vermelha arrastadas pelos chamados “lacerdinhas”, os redemoinhos que se formavam do nada, trocados pelos ventos do Planalto. Há uma foto de Nelson, acompanhado do filho Jofre Rodrigues, na Esplanada dos Ministérios, sob um sol de rachar catedrais, com a sombra espectral dos dois incorporada à imagem.
Como se sabe, a criação da capital provocou polêmica desde o início e Nelson não ficou em cima do muro. Escreveu uma crônica com o significativo título de “A derrota dos cretinos”. O texto nunca havia sido publicado nas sucessivas antologias das crônicas de Nelson e só foi resgatado dos arquivos graças ao instinto de repórter de Conceição Freitas. Mas Nelson fez outra inusitada referência a Brasília em uma das histórias de A vida como ela é...
Como se sabe, a criação da capital provocou polêmica desde o início e Nelson não ficou em cima do muro. Escreveu uma crônica com o significativo título de “A derrota dos cretinos”. O texto nunca havia sido publicado nas sucessivas antologias das crônicas de Nelson e só foi resgatado dos arquivos graças ao instinto de repórter de Conceição Freitas. Mas Nelson fez outra inusitada referência a Brasília em uma das histórias de A vida como ela é...
Sempre imagino que os grandes escritores se recolham em seu escritório ou torre de marfim para maquinar suas narrativas com calma. Mas Nelson produziu grande parte de suas obras nas redações dos jornais, em dramática contagem regressiva contra os ponteiros dos relógios. Todas as manhãs, de 1951 a 1961, seis dias por semana, chegava de terno, colocava o paletó na cadeira e escrevia as histórias de A vida como ela é... Trabalhava mais do que remador de Ben-Hur.
Paulo Francis contava que, quando Nelson se levantava para tomar o café, vinha algum gaiato e escrevia um parágrafo no texto original. Ao retornar, Nelson lia para se inteirar do assunto e continuava a história do ponto em que o autor intruso havia interferido. Pois bem, na citada crônica “A derrota dos cretinos”, Nelson já havia implicado com Carlos Drummond de Andrade, mencionando que queria ver o poeta dando rijas marteladas nos edifícios de Brasília, aspirando o pó sagrado da nova capital.
Na história intitulada “Covardia”, de A vida como ela é..., ele insere novamente Drummond e Brasília na trama de ficção, ao narrar o caso de uma mulher que marca um encontro para trair o marido. No entanto, ao chegar ao lugar combinado, ela se depara com o doutro Eustáquio, advogado e amifo da família. Ela alega estar esperando uma amiga e ele insiste em fazer-lhe companhia, estragando o furtivo encontro com o amante.
Para a irritação da dama, Eustáquio engata um papo para lá de qualquer coisa, metendo Drummond e Brasília no meio da ficção: “A minha amiga tem lido o Drummond, o Carlos Drummond de Andrade? O poeta! Pois é. A gente vive aprendendo. O Drummond é contra Brasília. Mete o pau em Brasília. Acompanhe o meu raciocínio. Se Drummond não aceita Brasília, é um falso poeta. Não lhe parece? A senhora admitiria um Camões que, diante do mar, perguntasse: ´Para que tanta água?`. Pois, minha senhora, creia. Recusando Brasília, o Carlos Drummond revela-se um Camões de piscina ou nem isso: - um Camões de bacia”.
Digitação e formatação
por Vicente Fialho